
Terminou.
Respiro de alívio.
Eu sempre disse:
terceira idade? Obrigada, mas não, obrigada.
Lembro-me de uma altura, na faculdade, em que abriu um curso sobre
psicogerontologia e uma colega comentou que deveríamos investir nesta área, já que a população está a envelhecer e o mercado de trabalho poderá vir a oferecer muitas oportunidades neste domínio. Eu respondi: "Até pode ser, mas nem pensar!". Ela seguiu a área de Psicologia da Criança e do Adolescente.
E o tempo passou. E formámo-nos. E fomos trabalhar.
O meu primeiro emprego foi numa empresa de consultadoria e formação, como formadora. Chamaram-me e disseram-me que iam abrir um curso e que precisavam de uma psicóloga para dar os módulos sobre Psicologia do Desenvolvimento. Lá fui eu, toda feliz e saltitante... Quando cheguei, deparei-me com um curso EFA de
Geriatria. Levei dias a preparar os módulos, pois não pescava nada do assunto (se soubesse, tinha feito o tal curso, na faculdade...), para além de umas noções gerais.
Depois de (apenas...) 10 horas de formação efectiva, chamaram-me de uma instituição, dizendo que tinha conseguido o estágio profissional. Saí da empresa de consultadoria e formação e lá fui eu, toda feliz e saltitante. Pensei que, se ficasse afecta a apenas uma única valência, seria o CAT, em que trabalharia com crianças e jovens em risco. Ainda me lembro de ouvir o meu "patrão": "Você fica no
Lar de Idosos XPTO". Sabem aquela cara que vocês fazem quando aquela tia vos dá uma prenda caríssima, mas que vocês odeiam (mais valia que vos desse o dinheiro, aí sim, teriam sabido aproveitá-lo como deve ser...), perante a qual têm de se mostrar emocionalmente entusiasmados, como se não soubessem como fora possível viver sem aquilo até aí? Pronto. Foi essa a cara que eu fiz.
A partir desse momento, o meu cérebro dividiu-se em dois (não me refiro aos hemisférios; esses, já os tinha) e uma constante luta passou a travar-se entre ambas as partes. A "parte boa" via a cena pelo lado positivo:
vou desconstruir estereótipos, vai ser uma oportunidade única de crescimento pessoal, vou aprender imenso. Mas a "parte verdadeira" sabia muito bem que isto era tudo uma tramóia para me encher de tretas que, supostamente, apaziguariam o meu espírito atormentado pelo
stress.
Nove meses passaram. Depois, três semanas de férias e mais três a repôr os dias em que faltei por causa do mestrado. E só agora é que começa o rescaldo propriamente dito...
Desconstruí alguns estereótipos, é verdade! Mas isto não significa que tenha ficado com uma excelente impressão acerca da velhice... Os idosos são, de maneira geral (e sem querer generalizar) (acabei de me contradizer, não foi?), e, ao contrário do que se possa esperar, tão imaturos! Com aqueles anos todos! Têm comportamentos e atitudes dignos de criancinhas, mesmo (e não me refiro à dependência - embora a dependência afectiva caia um pouco aqui)! É muito difícil acreditar num maual de Psicogerontologia que nos diz que o provérbio "de velhinho se volta a menino" não passa de um mito, quando nos deparamos com estes comportamentos:
- idosos dependentes que fazem chantagem emocional com os filhos para que estes não vão de férias;
- idosas que ficam sem se falar por picuinhices de nada;
- correrem para a cadeira onde uma utente gosta de se sentar, só porque insistem que "não há lugares marcados" e que ela não tem nada que estar sempre ali;
- pedirem às funcionárias que prendam aqueles mais desorientados, para que não mexam em tudo;
- duas idosas passarem a vida a cortar na casaca uma da outra, apenas porque ambas tinham um estatuto social elevado e os filhos são formados em áreas consideradas de prestígio (mas são uns saloios de primeira e um deles até, por vezes, extremamente agressivo para a mãe, devo acrescentar).
Tentei melhorar as relações interpessoais dos utentes, combater a solidão, evitar muitas confusões que se devem, unicamente, à intolerância que existe entre eles. Não consegui. Formei um grupo que começou com 13 pessoas e terminou com 4, imagine-se! A terapeuta não passava de uma incompetente? Provavelmente. Mas a maioria desistiu por estarem no grupo outros de quem não gostavam e, a seguir, outros desistiram porque já não estava no grupo a única pessoa de quem gostavam... Por mais que tentasse, por mais argumentos, por mais motivações, não consegui demovê-los da desistência. Mais uma vez se revela a incompetência da técnica. Mas também um bocado da tacanhez, cabeça-dura e mente fechada desta gente, não? Nota-se muito que não consegui criar uma verdadeira relação de empatia com a maioria dos idosos?...
Mas acreditem que não foi fácil trabalhar como psicóloga neste contexto. Antes de mais, explicar aos idosos a minha profissão... 99% dos utentes deste lar passaram a vida no campo e nunca ouviram falar em Psicologia (alguns, nem conseguirão pronunciar a palavra, quanto mais!). Uns contentam-se com a minha explicação sem nome; outros, pensam que sou médica; outros, ainda, professora. A maioria, não quer saber. Para que servem as minhas intervenções? Isso, acho que ninguém sabe. A começar pelas funcionárias. Eu expliquei! Mas, em muitos contextos, ainda não se valoriza a intervenção psicológica...
Pior do que não ter nome, foi o descrédito e desconfiança (naturais e compreensíveis, tendo em conta o seu percurso de vida!) dos utentes em relação ao meu trabalho... Imaginem o esforço descomunal que tinha que fazer quando, todos os dias, chegava ao trabalho um pouquinho mais desmotivada e encontrava uma série de rostos mal-humorados e que reviravam as órbitas sempre que eu tinha alguma proposta (
lá vem a chata que não me deixa lamentar-me dia e noite de não ter nada para fazer...). Talvez as minhas propostas fossem desinteressantes (dada a já referida incompetência da minha pessoa), mas, tendo em conta que as actividades preferidas dos idosos, segundo eles próprios, era "nada"... Isso não se coaduna muito com o trabalho que eu ali poderia desenvolver (mais valia tê-los deixado a "nadar" todo o dia!)... Acreditem que, para mim, foi dificílimo levar alguns utentes a levantarem o rabo da cadeira para realizar qualquer actividade - ou até, a realizarem as actividades ali mesmo, sentados nas cadeiras... Foi dificílimo colocar-me no "ponto de referência do utente" (aulas de Modelos de Personalidade e de Intervenção Picológica com o Prof. Joaquim Coimbra), e nem sempre consegui fazê-lo... Todos os dias contava os minutos para sair, as horas para o fim-de-semana... Chegava a casa emocionalmente esgotada, de tão desmotivada tanto tentar motivar tanta gente "inmotivável"...
Bem, mas nem tudo foi mau! Afeiçoei-me bastante a alguns doentes de Alzheimer, um já em fase avançada da doença, que comunicava de forma muito particular... Tive, com outros, conversas completamente psicóticas que acabavam por me fazer descontrair da realidade diária... E o que eu me ri...
Mas não foi só com as pessoas com demência que me identifiquei mais (esta frase soou terrivelmente mal)... A dona C., a dona G. e o sr. A. não só disponíveis e abertos para participar em todas as minhas propostas, mas também, e principalmente, disponíveis e abertos para receberem os benefícios do que era proposto. Não desfazendo todos os outros utentes que também colaboraram comigo, mas é sempre mais gratificante receber um sorriso e um
obrigado do que um suspiro de impaciência, um atormentado
outra vez?!, um aliviado
já posso ir embora? ou um
se eu sabia que era para fazer isto, não tinha vindo (que fique bem claro que NUNCA ninguém foi obrigado a nada e que todos apenas participaram VOLUNTARIAMENTE!). Portanto, concluindo, só gosto de quem dá importância ao que eu faço... É mais ou menos isto...
Para concluir:
o pior- a (não) orientação da minha (pseudo) orientadora;
- os gemidos dos doentes, os gritos dos desorientados, o ambiente meio hospitalar que se gerava, por vezes (e devido ao qual a carreira de medicina nunca foi alicienate para mim);
- as mortes que ocorreram (tantas!), especialmente a do sr. M. (o tal doente de Alzheimer), a da dona F. (doente psiquiátrica, quanto a mim mal acompanhada e mal medicada, mas quem sou eu?, porém, autónoma e independente, que tentou suicidar-se, atirando-se do 2.º andar e acabou por falecer de complicações secundárias à queda) e a da dona R. (cujos quase últimos minutos de visa presenciei - depois, não aguentei e saí do quarto).
o melhor- a relação que estabeleci com algumas funcionárias, especialmente a dona I.;
- as respostas e comentários inesperados dos utentes, as longas conversas com a dona L. (quando estava bem-disposta), as pequenas mudanças que observei e que me fizeram sentir que, no meio de tanta incompetência, aí uns 20% do meu esforço valeram a pena! Iu-hu!!
- Ter acabado. A sério. Acho que não suportava nem mais um dia. Nem mais uma hora.
Olhando bem (ou até só de relance), parece que o saldo é negativo... Enfim, é provável que, daqui a uns tempos, quando a situação não estiver tão "quente", eu seja capaz de olhar para isto de outra forma... Não se preocupem que, quando isso acontecer, a posta não vai ser tão grande! :)
ps: Estava a brincar. Eu nunca mais vou escrever sobre o estágio. Ou falar. Ou pensar. Acabou. YES!
pss: Agora, só espero que ninguém ligado ao lar XPTO venha aqui parar... :/ Medo...